A quem interessa a suposta ‘crise dos dividendos’ da Petrobras? 

Lula e Jean Paul Prates na RNEST / Foto: Agência Petrobrás

Em 2023, a Petrobras registrou o segundo maior lucro líquido de sua história, apesar do cenário global desafiador. A companhia bateu diversos recordes operacionais e de valor de mercado, reafirmando sua solidez financeira e eficiência operacional. E como resultado a estatal distribuirá o terceiro maior volume de dividendos de sua história, cerca de 72,4 bilhões de reais, o segundo maior entre as principais petrolíferas do mundo no período. O debate público sobre a companhia, entretanto, concentrou em uma suposta “crise dos dividendos” após a divulgação da proposta de seu Conselho Administrativo sobre a remuneração aos seus acionistas, no último dia 7. 

Segundo o jornal Valor Econômico, a Petrobras perdeu cerca de 43 bilhões de reais de valor de mercado entre os dias 7 e 12 de março, valor equivalente aos 43,9 bilhões de reais de lucros remanescentes do exercício de 2023. Por iniciativa do conselho da estatal, esses lucros remanescentes foram destinados integralmente à formação de “reserva de remuneração do capital” (prevista no inciso II, art. 56 do Estatuto Social). Com isso, esses fundos podem ser destinados ao pagamento de dividendos aos acionistas no futuro, a não ser que se enquadrem em uma exceção especificada no artigo 199 da Lei das Sociedades Anônimas. Esse uso específico e o momento escolhido para a distribuição dos dividendos são os principais pontos de discussão no debate público. 

A quem interessa uma suposta “crise dos dividendos” na Petrobras? A quem interessa essa perda de valor de mercado da companhia? Por que a terceira maior distribuição de dividendos da história da companhia e que pode alcançar até 116,3 bilhões de reais não satisfaz os interesses do “mercado”? 

O que observamos minutos após a divulgação da proposta de distribuição de dividendos foi uma reação desmedida e incompatível com os resultados positivos da Petrobras em 2023. Parte dos stakeholders da companhia, minoritários em sua estrutura de governança, se revelaram insatisfeitos com a proposta e mobilizaram todos seus instrumentos de pressão contra a governança da Petrobras. Uma ação evidentemente política e interessada. 

Aparentemente ainda presos a um liberalismo radical e autoritário e orientados por premissas de um plano de negócios derrotado nas urnas, parte desses agentes insiste que a única função social da companhia é gerar e distribuir valor, em uma visão míope e de curto prazo. Por isso, refutam qualquer proposta de plano de investimentos que incorpore uma visão estratégica de longo prazo, isto é, preocupada com a sustentabilidade operacional e financeira da companhia e o desenvolvimento industrial nacional via inversões em novas rotas tecnológicas de baixo carbono, ainda de menor rentabilidade. 

Outrossim, certos atores vão além e deslegitimam não só as decisões das mais altas instâncias de governança da companhia, como, em alguns casos, criminalizam a ação e interesse de outros stakeholders da companhia. As mãos, cada vez mais visíveis, do mercado reivindicam para si a primazia da política, se opondo a contramovimentos de outros atores e ao diálogo social. 

O embate travado sobre o montante de dividendos distribuídos pela Petrobras é a expressão cristalina da luta pela distribuição – mais ou menos desigual – da riqueza gerada pela maior e mais lucrativa empresa brasileira, que historicamente foi estruturada e financiada por investimentos públicos. 

Vale lembrar que, atualmente, o capital social da Petrobras se distribui da seguinte forma: investidores não-brasileiros detêm 47,51% do capital social da companhia; seguidos pelo Grupo de Controle (Governo Federal e BNDES), que possuem juntos 36,61%; e, por fim, 14,96% do capital social da empresa é de propriedade de acionistas privados brasileiros. Portanto, a apropriação da renda gerada pela Petrobras destina-se de forma majoritária a investidores privados e, em especial, a investidores internacionais. 

É preciso que todos os stakeholders da companhia – acionistas minoritários brasileiros e estrangeiros, grupo de controle e sociedade civil – não criminalizem a política e reconheçam o caráter misto da companhia. Em outras palavras, reconheçam que a função social da empresa pública e de economia mista vai além da geração e distribuição de valor no curto prazo, tal como previsto na Lei das Estatais de 2016 (art.27, incisos I e II). Sua função social abarca a “realização do interesse coletivo” e “atendimento ao imperativo da segurança nacional”, através da busca pelo “bem-estar econômico” e “ampliação do acesso de consumidores aos bens e serviços” produzidos por empresa pública. Ademais, é função social da empresa pública o “desenvolvimento ou emprego de tecnologia brasileira” em seu processo produtivo e adoção de “práticas de sustentabilidade ambiental e responsabilidade social”. 

Portanto, redirecionar o plano estratégico da Petrobras à ampliação de sua capacidade produtiva, com objetivo de reduzir a dependência de insumos importados e mitigar a volatilidade dos preços no mercado interno, e ao fortalecimento de rotas industriais em direção à transição energética justa ao mesmo tempo que atende as obrigações legais da companhia, viabiliza o interesse público e garante a geração sustentável de valor aos seus acionistas. No entanto, de fato, isso concorre com interesses minoritários em busca de lucros exorbitantes. Mas isso é parte do jogo democrático. 

Em resposta às pressões do mercado, os acionistas majoritários da companhia, sinalizaram para possibilidade de abertura de diálogo no interior das instâncias de governança da companhia e indicação de um membro do Ministério da Fazenda para substituir um de seus indicados ao CA. Essa posição abre espaço para concertação desses interesses. 

Por fim, a despeito da capacidade de resiliência financeira e operacional demonstrada pela companhia em 2023, é necessário orientar seu plano estratégico e destinar a riqueza gerada por suas atividades para consolidação de um plano de investimentos sistemático e de longo prazo na retomada das atividades exploratórias, expansão e modernização de seu parque de refino e inserção definitiva da companhia no desenvolvimento de novas rotas tecnológicas de baixo carbono. A Petrobras pode e deve ser um instrumento de política industrial importante para impulsionar a transição energética justa no Brasil, mas para isso é preciso superar os entraves e interesses de curto prazo. 

A crise climática e a geopolítica energética global demandam celeridade das petroleiras na descarbonização e transição de suas cadeias produtivas, porém a soberania e os interesses nacionais devem balizar esse processo. As potencialidades brasileiras, a capacidade de geração de renda da Petrobras e a qualidade de seus quadros técnicos são instrumentos valiosos para enfrentar os desafios do tempo presente. Para isso, é preciso investimentos públicos e privados, políticas públicas, sobretudo no campo industrial, e coordenação estatal. Não há mais espaço para distribuição de megadividendos, tampouco baixos investimentos. A Petrobras foi a companhia que menos investiu ao longo de 2023 entre as sete majors que já divulgaram seus resultados. A Petrobras precisa recuperar seu protagonismo. 

Por Mahatma Santos , Pesquisador do INEEP e do Núcleo de Pesquisa Desenvolvimento, Trabalho e Ambiente da UFRJ (DTA) 

** Publicado na revista Carta Capital, em 14/03/2024

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