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O Programa Pé de Meia, meritocracia e a juventude ‘nem-nem’

por Ricardo Berzoini
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O governo federal acaba de lançar o Programa Pé de Meia, que fornecerá incentivo financeiro para estudantes de baixa renda regularmente matriculados no ensino médio da rede pública, como forma de combater a evasão escolar e melhorar a empregabilidade. Serão contemplados alunos dos 14 aos 24 anos, cuja família está inscrita no Cadastro Único.

O objetivo é dar condições para ampliar a formação educacional, preparar melhor os jovens brasileiros para o mercado de trabalho e ser um esteio na construção da cidadania. O programa oferece apoio para os estudantes se matricularem, permanecerem na escola e assegura uma poupança para ser utilizada no final do curso. O benefício fica condicionado à frequência escolar e à não reprovação.

Já passava da hora do nosso país ter uma política como esta. A realidade social que temos hoje é um problema que precisa ser reparado e é uma ameaça ao nosso futuro, enquanto nação. O Brasil tem onze milhões de jovens de 15 a 29 anos que não trabalham nem estudam; estes são os que passaram a ser conhecidos como “nem-nem”. Somos o segundo país nesta estatística, de um total de 37 analisados pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Situação pior do que a nossa, apenas a da África do Sul.

Os motivos e a quantidade de jovens nem-nem variam conforme a renda familiar, mas os percentuais são maiores entre os extratos sociais de menor renda. A falta de estímulo das escolas se soma às dificuldades familiares, com ausência de uma ambiência que oriente e proteja, desde a primeira infância. A consequência é a preservação de uma péssima distribuição de renda familiar, deixando os jovens das periferias em condições de exclusão, com um sofrível nível de empregabilidade.

O impacto desta situação sobre o mercado de trabalho e sobre a geração de renda é direto. Há um reclamo geral por parte dos empregadores pelas dificuldades em ter trabalhadores e trabalhadoras capacitadas. Não se investe em educação e treinamento desde cedo e com isso não há jovens capacitados e entusiasmados com as vagas ofertadas; e estas, em grande parte são de ocupações precárias.

Esta situação tem sido tratada por muitos como sendo consequência de um desinteresse individual pura e simplesmente, ou seja, é uma questão de meritocracia. O que mais se ouve é que “hoje em dia o jovem não quer nada”, sugerindo a ideia de que os grupos sociais bem sucedidos não são responsáveis pelo que existe. Esta é uma interpretação cômoda, mas equivocada.

É evidente que numa sociedade democrática há que se garantir espaço para o talento individual. Todavia, é preciso ir além no diagnóstico do que hoje acontece em nosso país, com uma dimensão assustadora de jovens ausentes do mundo escolar e do mundo profissional.

Meritocracia é uma palavra bonita, mas perigosa. Como lembra a socióloga da Universidade de Londres Jo Littler, autora de Against Meritocracy: Culture, Power and Myths of Mobility (Contra a meritocracia: Cultura, Poder e Mitos da Mobilidade) “a ideia de meritocracia é utilizada para que um sistema social profundamente desigual pareça justo quando não o é”.

Falar em meritocracia requer, primeiro, que sejam dadas as mesmas condições aos que buscam alternativas no mercado de trabalho. Não faz sentido exigir competência e colocar no ringue da crua realidade da vida profissional jovens que estão em condições totalmente diferentes em termos de sua formação educacional, aqui considerada num sentido amplo e não apenas de suas especialidades técnicas.

O discurso simplório da valorização da meritocracia camufla as desigualdades de oportunidades. Imaginemos dois pilotos de carros de corrida. Um deles está num modelo de altíssima tecnologia, coisa de última geração, com supervisão das riquíssimas equipes técnicas; já o outro está apenas pilotando um carro de limitada potência de motor, com 1.000 cc (mil cilindradas), por exemplo. Nestas condições, quem irá vencer a disputa? É óbvio que o do carro comum não teria condições, mesmo se ele fosse o melhor piloto do mundo.

Portanto, é preciso sim valorizar o talento individual, mas é indispensável levar em conta o entorno da construção das aptidões e habilidades. Um país que quer ser uma nação próspera precisa olhar para o seu povo com esta preocupação de gerar as condições adequadas para que a capacidade técnica e intelectual de cada cidadão floresça e gere consequências objetivas para a sua realidade social e econômica.

A verdade é que o tempo vai passando e a melhoria na distribuição familiar e individual da renda e da riqueza em nosso país tem sido lenta. Os avanços ocorreram até 2014 e, de lá para cá houve um retrocesso nos níveis de pobreza e na distribuição de renda nacional. Essa realidade é nítida para qualquer um que queira enxergar. O pior é que se normalizaram as abissais diferenças espalhadas por todo canto.

Já não causa espanto a existência de um bairro popular com profundas carências sociais e urbanas, coalhado de habitações miseráveis e insalubres ao lado de regiões modernas, com moradias de altíssimo padrão, sem dever nada àqueles ambientes refinados das telas de cinema ou da tv. 

Nas avenidas de nossas cidades cada vez cresce mais o número de automóveis de alto luxo, de valor superior a R$ 1 milhão (e mesmo Ferraris e Maseratis) convivendo com carroças de tração humana ou animal que buscam sobrevivência na separação de embalagens que possam virar vinténs, largados nas calçadas sem uma preocupação verdadeira com uma reciclagem virtuosa.

Este é o Brasil que o programa Pé de Meia visa transformar. É evidente que sozinho não será capaz de reverter todas as profundas questões que afligem nossa sociedade. No entanto, é inegável que esta iniciativa representa um passo importante e deve ser reconhecida e valorizada por toda a sociedade brasileira.


Guilherme Lacerda, Doutor em Economia pela Unicamp, mestre em Economia pelo IPE-USP e professor do Departamento de Economia da UFES. Foi Presidente da FUNCEF (2003-20010) e Diretor do BNDES (2012-2015).

Ricardo Berzoini, Foi ministro da Previdência, das Comunicações e de Relações Institucionais. Ex-deputado federal, é aposentado do Banco do Brasil e sócio da Veredas Inteligência Estratégica.

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