O debate em torno da oferta de gás natural no Brasil vem se complexificando devido à ampliação dos interesses em jogo. As discussões recentes abrangem a expansão de sua oferta, a diversificação da demanda e a infraestrutura necessária para sua distribuição. Também envolve um aspecto ambiental, visto que o gás é uma opção menos poluente em comparação com outros derivados de petróleo.
Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE)[1], no Brasil, dois terços da oferta de gás natural, o equivalente a 134 milhões de m³/dia, provêm de importações – incluindo Gás Natural Liquefeito (GNL) por terminais costeiros (com capacidade de 57 milhões de m³/dia) e gás boliviano via Gasbol. Já a produção doméstica procede principalmente dos campos do pré-sal, representando cerca de 20% do total disponibilizado.
Cerca de 40% do consumo total é alocado em três principais usos: residencial e comercial, para aquecimento e cocção; industrial, sobretudo em setores intensivos em energia (tais como indústrias de vidro, cerâmica e siderurgia, onde o gás natural é preferido ao coque siderúrgico por razões ambientais); e, no setor de transporte, com o gás natural veicular (GNV).
Dos 20% restantes, em torno de 15% são destinados a refinarias e fábricas de fertilizantes e 5% são absorvidos pelo próprio sistema de gás (em estações de compressão e aquecedores em gasodutos).
Pelas estimativas da EPE, no pico de utilização, 40% do consumo de gás natural é destinado à geração de eletricidade em termelétricas. Esse uso é crucial para assegurar a estabilidade do Sistema Interligado Nacional (SIN), complementando a geração hidrelétrica quando os reservatórios apresentam níveis reduzidos.
Demanda x Oferta
Do lado da demanda, o consumo de gás natural tem um grande potencial de crescimento, impulsionado pela elevação da demanda industrial por fontes energéticas mais limpas, pelo aumento na produção de fertilizantes – que reduziria a dependência de importações –, e pelo maior uso de GNV no setor de transporte, onde o consumo é ainda limitado.
Do lado da oferta, as coisas não são tão simples. A expansão da distribuição de GNL no Brasil enfrenta grandes desafios devido à concentração da infraestrutura existente na faixa litorânea, do Sul ao Nordeste. Para melhorar a distribuição nacional, é preciso ampliar a rede de dutos – ou construir plantas de liquefação em diferentes regiões, visando alternativas para o transporte e armazenamento do GNL.
A crescente queda na produção boliviana de gás exige a busca por alternativas para recompor a oferta regional. Entre as opções avaliadas pela EPE, está o investimento em novas explorações na própria Bolívia, embora haja incertezas quanto à sua viabilidade.
Outra possibilidade é a integração do gás natural de Vaca Muerta (Argentina) à rede boliviana de dutos, que requer a conclusão da infraestrutura Argentina-Bolívia e a aceitação por parte da Bolívia de ser apenas intermediária.
E uma terceira alternativa propõe a construção de um gasoduto ligando Vaca Muerta, Uruguaiana e Porto Alegre.
Em qualquer caso, expandir a rede de gasodutos requer tempo e vultuosos investimentos, algo especialmente difícil diante da crise econômica argentina, da reduzida capacidade boliviana e do contexto de ajuste fiscal brasileiro. No Brasil, apesar de já haver projetos de gasodutos em andamento, ligados a reservatórios de gás em águas profundas, como na Bacia de Sergipe/Alagoas e BM-C-33 em Macaé, a necessidade de expansão é significativa.
Adicionalmente, a privatização da Eletrobras introduziu a obrigação legal de construir termelétricas a gás no Norte e Nordeste, visando aumentar a capacidade produtiva em 8 mil Megawatts, o que intensifica a demanda por investimentos na infraestrutura de gasodutos.
Finalmente, existe a opção de ampliar a produção doméstica, que requer maiores investimentos nas bacias de Campos, de Santos e no Nordeste, além de, no médio prazo, depender também da conclusão das chamadas Rota 3 e Rota 4.
Hoje, uma pequena parcela do gás natural produzido é queimada e uma quantidade significativa é reinjetada nos poços para elevar a pressão e a produção de petróleo, devido à falta de infraestrutura para escoamento. Além disso, o alto teor de CO2 presente no gás exige processos de filtragem, o que eleva os custos.
Esses desafios se somam aos investimentos necessários para expandir a malha de dutos e aprimorar as unidades de processamento de gás natural (UPGNs), criando um cenário que demanda significativos aportes financeiros.
Até o momento, há duas vias de definição dos preços do gás no Brasil: os preços da Bolívia, estabelecidos por acordos de longo prazo que levam em conta referências do mercado internacional, como o preço do petróleo tipo Brent, as flutuações do dólar e os preços GNL dolarizados; e os preços da produção interna, influenciados pelos custos de produção, transporte, distribuição e uma margem adicional.
Se os investimentos para a ampliação da infraestrutura forem incorporados rapidamente no preço final do gás, e não através de uma amortização planejada e de longo prazo, haverá um aumento significativo desses custos e dos preços do gás natural, inviabilizando o atendimento da demanda hoje existente.
Assim, ao mesmo tempo que novos investimentos são essenciais, é igualmente importante um planejamento estratégico. Desde o governo Temer, passando pelo governo Bolsonaro e incluindo ajustes no CADE, foram desenvolvidas estratégias para criar um mercado de gás natural mais competitivo (Novo Mercado do Gás – NMG), incentivando a entrada de novas empresas. Contudo, ao fragmentar o setor, essas políticas aumentaram os desafios de investimento não atendidos.
Além disso, a venda de ativos da Petrobras em produção, transporte e distribuição de gás natural comprometeu a capacidade de um planejamento integrado e o papel da empresa pública nesse contexto.
Longe de ser um empecilho ao desenvolvimento da oferta de gás natural no país, visão que predominou no período anterior, a Petrobras é fundamental para a estruturação de uma oferta nacional abrangente e diversificada, alcançando todo o território nacional e aproveitando as sinergias entre produção nacional e importação.
Recuperar o protagonismo da estatal no setor é essencial para expandir a oferta de gás a preços competitivos e fomentar o aumento da demanda. Sem essa visão estratégica, o mercado de gás poderá ficar sendo apenas uma possibilidade, apesar dos estudos e interesses que confirmam sua viabilidade.
Nota [1] Dados extraídos do Plano Decenal de Expansão de Energia 2030 (EPE/MME, 2021).
Por Adhemar Mineiro, Economista formado pela UFRJ, doutorando no PPGCTIA (Programa de Pós Graduação em Ciência, Tecnologia e Inovação em Agropecuária) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Trabalhou no Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio Econômicos), assessora desde 2003 da Rebrip (Rede Brasileira Pela Integração dos Povos) e é pesquisador do Ineep (Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis)