A Faria Lima recebeu bem a indicação de Gabriel Galípolo para a presidência do Banco Central. Na verdade, recebeu bem, condicionalmente. Sabe como é, ele poderá ser um bom presidente, desde que não afronte os dogmas do mercado financeiro. Afinal, a pesquisa Focus ausculta o mercado e guia as decisões do Comitê de Política Monetária (Copom). Nesta coleta formadora de expectativas, não há, por aqui, as vozes da indústria, do comércio, dos serviços, da agricultura, muito menos dos trabalhadores e micro empresários. Se Galípolo e a diretoria do Banco Central andarem fora do que o grupo consultado deseja, ora, ora, lá se vai o apoio do mercado.
A Selic, taxa básica de juros de Pindorama, deverá seguir entre as mais altas do mundo (em termos reais), ainda que caia, acompanhando o FED e o BC, que provavelmente iniciarão um ciclo de baixa em breve. Mas a pressão por aumentos é pesada, mesmo com os preços ficando aquém das apostas e sem nenhum sinal de turbulência no horizonte. Por aqui a insensatez viceja, a qual começa com uma meta de inflação excessivamente rigorosa para a atual conjuntura mundial de guerras quentes e frias e diante da etapa de organização estrutural de nossa economia.
Mas não queremos, com este repto, criar constrangimentos para a relação entre Galípolo e os informantes da Pesquisa Focus de todas as segundas. Preferimos tratar de outra aberração da nossa economia. Trata-se do spread bancário, que nada mais é que a diferença entre as taxas cobradas pelos bancos nas variadas modalidades de crédito e o custo de captação dos recursos financeiros.
Informa o Banco Central que o spread em operações de crédito teve leve recuo em julho. O spread médio no crédito livre passou de 28,1 % em junho para 28,0 % em julho. Ou seja, além da taxa Selic, de 10,5%, temos uma média de 28%, o que dá um custo financeiro bruto de 38,5% ao ano; mais de 2,7% ao mês. A média mundial está em torno de 6% ao ano, diz o Banco Mundial. Vê-se que a diferença para com a nossa economia é abissal.
Nos últimos 30 anos, ocorreram várias reformas que visavam enfrentar esse problema. Para cada uma delas havia um clamor de diferentes segmentos realçando a necessidade de fazê-las e anunciando que elas levariam a uma imediata redução do custo do crédito em nosso país. Os jornais e noticiários estão repletos dessas manifestações. A lista é longa, onde se inclui o cadastro positivo, o open banking, a limitação dos juros rotativos dos cartões de crédito (Lei 14.690, de 3 de outubro de 2023), o marco das garantias e para as empresas, a revisão da lei de falências e concordatas. Tudo muito bem desenhado e divulgado.
Todavia, o que aconteceu depois de cada uma das revisões legais? A realidade pouco mudou. Os dados do Banco Mundial mostram a posição no ranking mundial e as economias nossas vizinhas. O Brasil está distante de economias de renda média e estruturas produtivas complexas. Nossa posição é melhor que Zimbabue e Madasgacar e pior que Laos, Tajiquistão, RD Congo, Sudão do Sul, São Tomé do Sul, Quirguistão, para ficar em alguns de muitos outros.
Não há como negar, temos spreads bancários extremamente elevados que corroem as finanças pessoais e corporativas. Há uma dragagem incessante de recursos financeiros da economia real para o circuito financeiro que, inexoravelmente, leva a uma constante expansão da inadimplência e restringe o crescimento econômico. Os programas de regularização de dívidas para pessoas físicas e micro/pequenas empresas mostraram números formidáveis. A limitação de se ter cobranças no cartão de crédito que não ultrapassem o dobro do capital tomado é um marco que deve ser valorizado. O Desenrola Brasil foi um programa exitoso do governo federal para renegociar dívidas atrasadas de pessoas físicas e jurídicas. Todavia, logo após as regularizações há uma retomada no acúmulo de dívidas que sugam orçamentos familiares e restringem a gestão de micros e pequenas empresas. Assim, mantém-se um ciclo vicioso com a manutenção nas alturas dos spreads bancários e, com isso, a perda de tração das políticas econômicas.
Já passa da hora dessa realidade incômoda ser avaliada a fundo. Os espantosos resultados financeiros do sistema bancário no Brasil, divulgados a cada trimestre, contrastam com as situações delicadas e os altos níveis de insolvências de empresas pequenas e médias. São poucas as companhias que podem acessar o mercado de capitais. Como consequência, os planos de investimentos para modernização e expansão são adiados. Os custos dos recursos de opex (capital de giro), indispensáveis para as empresas, mantém-se em patamares que impactam os custos produtivos e impõem necessidades de revisões de margens.
O diabo é que esta dimensão dos juros de ser parte integrante dos custos é desprezada pela Autoridade Monetária e pelos analistas bem postados como formadores de opinião. Os debates sobre a posição dos juros no sistema econômico concentram-se apenas na ótica do mercado financeiro. Uma avalanche de manifestações forma uma narrativa consolidada da necessidade de manter um juro real distante de todas as demais economias. Batem e rebatem incessantemente no argumento da exigência de elevar ainda mais os juros para reter uma oscilação de preços que só eles enxergam, anunciada como um asteroide que caminha em nossa direção. Só eles possuem os telescópios que indicam a ameaça. Os discursos valorizados no dia-a-dia sustentam premissas com aparências sólidas que ganham ares de verdades absolutas. Passa totalmente ao largo o debate sobre os juros enquanto integrante do custo de produção e, como consequência, um fator pesado na formação de preços.
Enfim, para um sistema econômico saudável impõe-se a necessidade de uma taxa de juros básica não distorcida como a que se tem hoje. E, além disso, é imprescindível que os custos de financiamento para o setor produtivo não se mantenham nos patamares que há anos prevalece em nosso país. Tais spreads bancários são a face escancarada de um sistema econômico deformado que assegura a transferência contínua de valores gerados na economia real para o circuito financeiro. Esta dragagem incessante de riquezas nacional é um sintoma perverso da desigualdade na distribuição de renda e riqueza de nosso país.
Espera-se que o futuro presidente do BC e a equipe de diretores que se renova tenham disposição de olhar os instrumentos de política monetária em sua amplitude. Os juros, enquanto componente da formação de preços, são fator determinante da dinâmica econômica sistêmica. Estão bem claros na Lei Complementar 179/2021 os objetivos institucionais daquela Autarquia, os quais estabelecem o foco na preservação da estabilidade monetária, integrada com os compromissos de “suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego”.
Ricardo Berzoini foi ministro da Previdência, das Comunicações e de Relações Institucionais. Ex-deputado federal. Aposentado do Banco do Brasil. É sócio da Veredas Inteligência Estratégica.
Guilherme Narciso de Lacerda é doutor em Economia pela Unicamp, mestre em Economia pelo IPE-USP, professor (após) do Departamento de Economia da UFES. Foi presidente da Funcef (2003-20010) e diretor do BNDES (2012-2015). Autor do livro “Devagar é que não se vai longe – PPPs e Desenvolvimento Econômico”, publicado pela Editora LetraCapital. É associado da Veredas Inteligência Estratégica. É associado da Veredas Inteligência Estratégica.
Fonte: Congresso em Foco / UOL